"Por que isso está acontecendo? Por que eu não quero ser assim?". Esses eram alguns dos pensamentos que a ilustradora, quadrinista e tatuadora, Lua, 26, que se identifica como uma pessoa não-binária, tinha no começo de sua adolescência, durante o seu desenvolvimento. Ela não se enxergava dentro daquele corpo cheio de mudanças.
Lua está na fila do SUS para fazer uma mastectomia, a cirurgia de retirada de mamas. Mas sua situação é mais delicada, pois não se identifica com nenhum gênero e não quer passar pela hormonização. O que a deixa fora do padrão proposto pelo Ministério da Saúde para pessoas transsexuais (onde os não-binários se encaixam) de acompanhamento e realização de cirurgia de forma gratuita.
Procurada pela reportagem, a pasta respondeu que "a cirurgia de ressecção de mamas é um dos procedimentos oferecidos aos usuários em processo transexualizador. O procedimento é realizado em pacientes com indicação específica e que tenham acompanhamento prévio com uma equipe multiprofissional por pelo menos dois anos", sem esclarecer o que os profissionais da saúde devem fazer em caso de pacientes não-binários.
Traumas físicos e psicológicos
"Usei roupas largas e longas, até em calor excessivo, durante toda minha adolescência. Queria cobrir meu corpo. Os médicos que me acompanham hoje, falam até do abalo que tive na postura, por ficar curvada por conta da disforia", conta Lua.
Mesmo sem uma instrução clara do Ministério da Saúde, ela faz tratamento no Centro de Referência de Saúde Integral para a População de Travestis e Transexuais, no centro de São Paulo. Lua escreveu um quadrinho autobiográfico chamado "Não-Binária Apenas" e levou a obra para explicar como se sentia aos profissionais do local.
"Não tenho interesse em fazer a hormonização, só quero a mastectomia. Expliquei tudo o que estava sentindo, levei meu livro para eles lerem? Isso ajudou no entendimento", Lua.
Ainda assim, ela precisa passar pelo acompanhamento psicológico e psiquiátrico por pelo menos dois anos antes de conseguir fazer a cirurgia.
O Centro de Referência e Treinamento do Estado de São Paulo (CRT), diz que já foram realizadas seis cirurgias de retirada de mama em pessoas não-binárias no estado. E que "as cirurgias não estão vinculadas à auto referência de identidade de gênero como categoria de grupo, mas em direção ao alívio e adequação corporal".
Quando questionados como funciona o processo para quem é não-binário, Ricardo Barbosa Martins, coordenador do Ambulatório Trans do Centro de Referencia e Treinamento DST/Aids do Estado de São Paulo disse que "trata-se de um processo psicoeducativo de compartilhamento com os profissionais, do incômodo e sentimento de inadequação corporal, juntamente com a construção da melhor imagem corporal que a pessoa tem de si. Ao mesmo tempo, o procedimento cirúrgico é discutido e apresentado, incluindo uma avaliação dos impactos na vida e convívio social."
Artiste visual e produter cultural, Ea Damaia, 25, começou recentemente o tratamento hormonal, em busca de uma mudança na voz. "Decidi que queria fazer a mastectomia assim que iniciei a hormonização. Me pediram acompanhamento por pelo menos dois anos para conseguir a cirurgia", diz.
Sua vida já está bem melhor com a pequena dose de hormônio que toma uma vez ao mês, já que com a mudança da voz seu dimorfismo foi atenuado.
"Não quero ter características masculinas muito marcadas, como a barba, por exemplo. Talvez, daqui alguns anos, eu pare de consumir testosterona. O que queria, na verdade, é que a minha voz mudasse. É isso que busco", Ea Damaia.
Elu afirma que sente alívio com o tempo que pode levar até sua cirurgia. Não pelo medo de retirar os seios, e sim, pela aflição do procedimento. "A assistente social me explicou que eu posso desistir quando quiser, que provavelmente só terei a liberação em 2026. E mesmo assim, posso esperar mais", diz.
'Tinha medo de contar'
O produtor de conteúdo Igor Sudano, 31, que também se identifica como uma pessoa não-binária, não consegue nem se lembrar quando começou o problema com seus seios. Mas quando contou para a sua mãe que era uma pessoa trans e queria fazer a mastectomia, ela não ficou surpresa.
"Ela me contou que já sabia que eu queria retirar as mamas, pois, segundo ela, era algo que eu falava desde criança. Não ter mamas sempre foi uma coisa certa para mim", diz. Ele começou a fazer o tratamento hormonal porque gosta das características mais masculinas. Seu entendimento como não-binário veio mais tarde.
"Comecei meu processo hormonal em 2017 e foi desgastante a busca por solução para a retirada das mamas. Não éramos tão letrados, a legislação mal existia e não falávamos muito sobre o assunto", conta. Primeiramente, Igor tentou a liberação da cirurgia pelo convênio. O contato com o preconceito já começou dentro do laboratório, onde estava fazendo os exames necessários para o procedimento.
"Quando o resultado do laboratório retornou, o exame estava sinalizado que eu era uma pessoa do sexo feminino. Isso me colocou na categoria de cirurgia estética com o plano de saúde. Eu expliquei para o médico, mas ele me disse que não iria ferir sua ética médica e mentir sobre meu gênero. Me desanimei", diz. Por isso, resolveu juntar dinheiro para fazer o processo de maneira particular.
"Na época em que eu fiz a cirurgia já me entendia como uma pessoa não-binária, mas eu não tinha coragem de falar. Já era difícil os profissionais respeitarem um homem ou uma mulher trans, que estão dentro de um gênero binário, vão respeitar um não-binário?", Igor Sudano.
O cirurgião plástico Guilherme Guardia Mattar, especialista em mamoplastia masculinizadora, atende pacientes tanto no SUS quanto no particular. E reforça a fala do Igor: há preconceito, sim
"Como muitos pacientes não-binários não querem passar pela harmonização, eles têm um acesso muito mais dificultoso ao tratamento até chegar na cirurgia. E também sofrem preconceitos de outros profissionais que não estão habituados a essa pluralidade de gênero", diz.
"Já tive pacientes não-binários que não queriam retirar, mas fazer uma redução extrema da mama", diz Mattar. E assim como no SUS, um laudo de psicólogo ou psiquiatra é necessário antes da cirurgia no particular. "Temos que ter um cuidado individualizado com cada paciente", conclui
Fonte: UOL
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